terça-feira, 22 de agosto de 2017

#Tánamesa - A Filosofia do Brócolis (Ernani Lemos)

A FILOSOFIA DO BRÓCOLIS 
Dublin, 25.07.2010

 Minha amiga Ruta, da Lituânia, tinha ido ao banheiro e eu travei a porta por fora com uma vassoura.  Era começo de domingo, nosso dia favorito de trabalho no coffee shop. Sem chefe, sempre podíamos fazer coisas importantes, como esconder o avental dos colegas, criar pesonagens com comida, servir leite integral quando o cliente pedia desnatado...
 Mas Ruta estava triste naquele dia, por isso precisei trancá-la no banheiro. Enquanto ela me xingava, usei chantilly e geleia de framboesa pra desenhar um rosto numa enorme cabeça de brócolis. Depois deixei a surpresa na cozinha, tirei a vassoura da porta e saí correndo. 
 Quando voltei, Ruta já tinha dado ao brócolis o nome de Suzy. Bagunçamos com ela na cozinha até que a lei da gravidade derrubou nosso brinquedo. Como castigo, tivemos que limpar o chantilly gorduroso do piso. Suzy tomou banho e virou salada. Mas foi um final feliz. Durante poucas horas em que viveu, ela fez minha amiga sorrir. 

 Noutro domingo, algumas semanas antes, vi uma moça limpando a janela de uma lanchonete. Ela esfregava o vidro como se tivesse o pior emprego do mundo. Acontece que ninguém poderia dizer, apenas olhando, se o problema era mesmo o trabalho. Também poderia ser uma doença, briga de família, saudade ou outro tipo de dor. 
 Uma senhora passou e disse:
 "Você tá ótima hoje. Belo vestido!" 
 Foi como mudar um interruptor. Imediatamente a limpeza do vidro passou a parecer o trabalho dos sonhos. A menina não conseguia disfarçar a alegria. E a velhinha seguiu andando, sem saber que o galanteio inocente fez o dia da outra valer a pena.


 Ontem eu estava limpando o balcão do coffee shop depois de mais um dia corrido. Meu amigo Eddie, um aposentado irlandês, passou na janela e me chamou com uma cara séria. Minha espinha gelou. Teresa, a mulher dele, teve um derrame há dois anos e ficou presa a uma cadeira de rodas. Uma infecção recente piorou o quadro. Ela deixou de comer e falar direito, começou a ter lapsos de memória e já não reconhecia o marido todos os dias. Quando eu disse, algumas semanas atrás, que estava torcendo para ela melhorar, fui surpreendido por uma resposta do Eddie:
 "A essa altura eu já nem sei o que é melhor."
 Teresa sempre pareceu valente e nunca deixou de ser doce comigo e com a japinha nas vezes em que nos recebeu em casa. Era penoso vê-la se desmanchar aos poucos. De alguma forma, todos nós aguardávamos a notícia ruim. Foi por isso que congelei ontem ao ver Eddie na janela. 
 Na rua, dei de cara com aquela senhora de voz suave, sentada na velha cadeira de rodas. Profundamente debilitada, mas de novo capaz de falar, Teresa, que agora também não move as mãos, se esforçou e me saudou: 
 "Oi Ernani. Que bom ver você."
 Não sei explicar a emoção que foi ouvir aquela mulher. Conversamos pouco, para não cansá-la. Falei do clima, de como ela parecia bem e prometi visitá-la logo.Satisfeito com o breve diálogo, Eddie me confidenciou: 
 "Achei que ela não fosse te reconhecer. A memória está muito ruim mesmo."
 Antes de voltar para casa, ele resolveu fazer um teste:
 "Tes, em que país o Ernani nasceu?"
 "No Brasil, oras."
 Acho que poucas vezes fiquei tão feliz por ouvir um gringo falar o nome do país de onde vim. Às vezes até uma convivência breve pode criar raízes profundas na memória das pessoas. Eddie atravessou a rua empurrando a cadeira da esposa e eu voltei para o trabalho. Aquela visita inesperada fez minha semana inteira valer a pena. 
 Pequenos gestos podem mudar os rumos de qualquer um. Para algumas pessoas, pode ser um elogio. Para outras, um brócolis enfeitado. E há aqueles que só precisam continuar vivendo, para fazer a nossa própria vida ter sentido. 
 Essa crônica está no livro maravilhoso "Sobre os Outros", do Ernani. O livro contém várias crônicas nesse estilo, com diferentes relatos pessoas, que sempre trazem uma mensagem linda por trás. Amo! 
 Vale a pena conferir, hein!! 

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